Ações afirmativas e universidade utópica

O acolhimento de grupos historicamente excluídos não se resolve na afirmação da diferença anterior ao encontro. O verdadeiro respeito implica transformação e exige inventar um novo espaço ético, político e epistemológico


Por João Carlos Salles

Este texto foi apresentado como aula inaugural do semestre 2023.1 da Universidade Federal do Pampa, com o título “Educação e cidadania: sobre acolhimento e respeito em ações afirmativas”.

1. Devemos sempre renovar nosso compromisso com uma sociedade democrática. Passada a mais inclemente tormenta, sendo possível agora um diálogo com o governo federal, importa refletir e continuar a defender os valores universitários mais essenciais e permanentes. Afinal, um outro mundo é possível, mas nenhum valerá a pena em nosso país sem uma universidade pública e inclusiva, capaz de realizar, de norte a sul, ensino, pesquisa e extensão de qualidade. 

 

Estivemos juntos e misturados no combate aos desmandos vários de um governo tirano. Não fomos cúmplices dos absurdos que o obscurantismo mais completo nos quis impor. Agora, após uma vitória tão significativa, não podemos ser cúmplices de nenhum rebaixamento de nossos sonhos. Qualquer o governo, nossa medida é o bem comum – uma luta, pois, constante e de longa duração, que nos leva a resistir na tormenta e na calmaria contra toda e qualquer limitação de nossos sonhos deveras utópicos. 

Nada deve arrefecer, por exemplo, nossa defesa da universidade como espaço autônomo. Chova ou faça sol, é nosso dever, por exemplo:

  1. Combater a separação entre excelência acadêmica e compromisso social, uma vez que afirmar apenas o compromisso social ou apenas a excelência acadêmica, como dimensões separadas, é diminuir o brilho de nossa gente, que pode e deve iluminar com seu talento o espaço específico da vida acadêmica, produzindo ciência, cultura e arte; 
  2. Combater a separação entre ciência básica e ciência aplicada, que se amesquinha inclusive na separação entre os interesses da ciência, da tecnologia e da inovação, por um lado, e os dilemas das humanidades
  3. Reafirmar, por outro lado, a ligação entre todos os níveis de ensino – contra, portanto, a oposição (enviesada e perigosa) entre educação básica e educação superior. 
  4. Afirmar a universidade como parte de um projeto de nação e, portanto, como um projeto que nos coloca a todos em linha de conta, tendo todas as nossas instituições padrões de qualidade comensuráveis.

Sim, no ambiente da universidade pública e contra interesses privatizantes, cabe insistir, nossa luta é sem trégua. Mesmo neste momento de clareira, de abertura, após tenebrosa noite, muitos são os riscos. Assim, precisamos estar preparados para o conflito (como sempre estivemos), mas também para a sutileza, como nunca podemos deixar de estar. Escapamos do escabroso, do abjeto. Pulamos a fogueira e, todavia, caímos no Brasil, no Brasil ele mesmo, digamos assim, com suas ambiguidades e sutilezas, com suas melhores esperanças e suas violências as mais ordinárias. 

Deixado a si mesmo, nosso país é assustador: excludente, autoritário, mal letrado – e isso é assim, que fique claro, em todo o Brasil, retrógrado tanto no Sul quanto no Nordeste, embora de maneira diversa e aparentemente oposta. Pensando no contexto da política e da cultura institucionais, é obviamente conservador e pode ser também retrógrado o cenário em que podemos operar, ao falarmos de conhecimento, de igualdade, de combate a preconceitos. Continuamos, pois, a viver a paradoxal situação de uma cultura rica, em diversas dimensões e por toda parte, mas situada em um espaço público primitivo, tosco, de sorte que a experiência da vida pública em nosso país tem amarras concretas, tanto simbólicas quanto práticas. 

Desse modo, a abertura de um semestre letivo, sempre carregada de esperanças, é mais que oportuna para refletirmos sobre os laços internos entre educação e cidadania. Farei isso, então, de duas maneiras. A primeira, bastante breve, em considerações gerais sobre a relação entre essas duas dimensões. Em segundo lugar, discutirei a importância do aprofundamento das ações afirmativas, que as traduzem, refletindo sobre uma possível ambiguidade que pode afetar e pôr em risco o significado mais profundo de nossas políticas de inclusão, que não podem se afastar do duplo desígnio de enriquecimento do processo educacional e de aprofundamento da cidadania.

Fonte: OUTRASPALAVRAS - Leia o texto completo em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/acoes-afirmativas-e-universidade-utopica/

 

 

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